quarta-feira, 17 de junho de 2015

Pequenas histórias de meninos que (não) falam

Por Ana Clélia de Oliveira Rocha
Tudo pra ser
Aquilo tudo que todo mundo espera
Todo um perfil
Aquele jeito que todo mundo gosta
Tudo pra ter… Tudo!
Um jeito que agrada… Todos!*

Ricardo é hoje um garoto de 13 anos. Chegou ao consultório com 2 anos, fralda, mamadeira e uma particularidade: não falava. Trabalhamos durante onze anos e, em dezembro do ano passado, Ricardo teve alta.  De vez em quando, almoçamos e ele me diz :  “Agora sou seu amigo”. E me pergunta: “Você me ensinava a falar as palavras, né?” Estamos caminhando e passa um menino gaguejando muito ao nosso lado.
- “Como se fala o que esse menino tem que não consegue falar direito?”
- “Gagueira!”
-  “ Viu, Ana, amigos podem também nos ensinar as palavras.”
Nunca falamos em autismo.
Tudo afiado na ponta da língua
Tudo decorado de cabeça
Você permanece muito combinado, calculado
Mesmo sem medida
André é um garoto que conheci quando ele tinha 5 anos. Falava, falava muito, mas não nomeava, descrevia tudo: “Ana, quero aquele tabuleiro com dados e pinos vermelho e azuis”. Falava sempre em terceira pessoa: “O André quer ir pegar o papel”.   Emitia  frases feitas sempre, semelhantes aos ditados populares. “Amigo é quem está na escola.” Não eram frases repetitivas, ecolálicas,  mas elas soavam como tiradas de um livro, de  histórias já contadas. Ele é um menino  teatral e começa a aprender a escrever. Adora. Rapidamente torna-se um leitor também. Neste momento, agora com 7 anos, começa a nomear-se em primeira pessoa:  “Eu vou com a Ana para a sala”. Eu passo a ser a terceira pessoa, não sou você, mas a Ana.  Um bom deslocamento.
Nunca falamos em autismo.
Muito pra ver
O que te falta, o que todo mundo espera
Está por um fio
Aquela cara que a gente mais venera
Pode apostar… Tudo!
Fernando é bem pequeno. Tem também 3 anos quando o conheço. Não me olha, não fala, é quieto, mas chora.  Eu o vejo durante um ano, sempre duas vezes por semana, a mãe precisa entrar na sala, desenhamos,  brincamos com instrumentos musicais,  ficamos no chão imitando cachorros, gatos… Atualmente está com 4 anos, sobe sozinho comigo para o atendimento, pede um tempo de silêncio, depois me olha profundamente, eu insisto e brincamos de carrinho, trenzinho, onde colocamos o papai , a mamãe, a Elena (sua irmã),  eu, a Julieta… Repetimos esta brincadeira toda semana, mas ele a cada dia parece olhar mais, acrescentar um carrinho, enfim, pede para ir ao banheiro… Na última sessão eu fiz um rosto no papel e ele disse: “Falta” – e completou desenhando o corpo.
Nunca falamos em autismo.
Tudo!
Tanto que falta para chegar no ponto
Tanto que falta para ficar ok
Tanto que falta para chegar no ponto
Tanto que falta para ficar ok
Tanto que falta para chegar no ponto
Tanto que falta para ficar

Meninos exemplares de como a falta da fala, de como um silêncio que se prolonga numa época na qual as palavras explodem na vida de uma criança, precisa ser cuidada.  Não para desaparecer, mas para estabelecer laços e  falar-se.
Nunca falamos em autismo. Sabemos que algo desta ordem entra em cena no tratamento e na vida destas crianças e suas famílias, mas não foi este significante que marcou/determinou/orientou  o trabalho terapêutico, pois quando entramos neste mundo enigmático da aquisição da fala não temos um mapa que nos guie e garanta o que lemos nos manuais:  que aos 2 anos uma criança fale frases com 2 palavras, que aos 3 tenha pequenas narrativas e que aos 5 a aquisição esteja completa em todos os aspecto, que a criança se torna, enfim uma falante plena, e mais… pode começar a aprender a escrever!
Muitas crianças vão construindo uma entrada própria no campo da linguagem, que pode ser  mais lenta e deixar o outro angustiado, pois num mundo onde tudo é muito rápido, onde o tempo tem que ser bem empregado, “o que ele está perdendo vai ser possível recuperar?” Perguntas que são formuladas de modos diferentes pelas famílias, mas que traduzem a angústia do tempo que corre e que seus filhos parecem não conseguir alcançar.
Há crianças cujo percurso exige mais cuidado, atenção, questionamento, troca e parceria neste tempo do desenvolvimento. Crianças com as quais temos que aprender a sustentar um outro tempo, um tempo exclusivo e próprio de cada uma. Percursos que também podemos percorrer, sempre!
 * OK, Tulipa Ruiz
Fonte: Estadão Blog  Criança em desenvolvimento

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