sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O olhar que transforma!


Eliane Brum escreve em seu livro "A vida que ninguém vê" um texto capaz de mudar o olhar de quem o lê. Relatando a história de uma professora e de um aluno (foto) em uma vila em Nova Hamburgo, ela consegue mobilizar a reflexão acerca das possibilidades que temos todos os dias de transformar a educação. E mais do que isso, de transformar a vida de nossos alunos e daqueles que necessitam do nosso  cuidado como educadores, ressaltando que isso, muitas vezes acontece por meio de simples gestos, que exigem muito mais da nossa humanidade, do que dos nossos conhecimentos profissionais. 

História de um olhar

O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. 

Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.

Inclui.

Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.

Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.

Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, desempregados da indústria. 

Biscateiros, papeleiros. Excluídos.

Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.

Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das idéias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.

Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar. Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.

Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.

Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.

Uma cena e tanto. Israel na janela, espiando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.

E o olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lavar a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.

Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.

Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?

E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu as ruas de pedra.

Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar uma vaga oficial na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.

Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra.

[18 de setembro de 1999]


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