quinta-feira, 21 de junho de 2018

Os encantos de uma criança sapeca: Um mero deslumbre ou uma armadilha para a atuação?

* Dandara da Cruz Vieira



Início de observação de estágio no CMEI. Agrupamento das crianças de dois anos. Nove rostinhos pequetuxos, com olhares inocentes e desconfiados tentado decifrar o que seria aquela nova figura na sala de aula. “Vamos dizer “Oi!” para a tia Dandara?!”, convidou a professora. No entanto, poucos se dispuseram ao cumprimento envolvidos pela timidez. Nem liguei, pois era uma timidez tão fofa que qualquer um com um fofurômetro apurado se daria mais do que satisfeito com aquele breve “vácuo”.
Feitos os protocolos iniciais, participei das atividades para me aproximar mais do grupo. Participei da hora das cantigas de roda, da hora do livro e do momento do parquinho. Em todas as atividades, uma figurinha específica se destacou em meio às outras. Gabriela. Uma menininha sapeca de bochechinhas sedutoras e conversinha invocada que prendia muito a atenção da professora e da auxiliar. A Gabriela estava em todas. Se tinha uma situação engraçada, lá estava a Gabriela. Se tinha uma situação que requisitava a atenção das crianças, a primeira a ser chamada era a Gabriela. Se tinha uma situação de desentendimento entre coleguinhas, lá estava a Gabriela. Até as broncas direcionadas à Gabriela eram mais “adocicadas”, se comparada com as direcionadas às outras crianças. Tal observação me causou certo incômodo, pois percebi que esse favoritismo diferenciava e limitava o modo como as outras crianças interagiam naquele espaço.
Passei a indagar-me sobre o assunto e, de início, fui tomada por uma certa revolta. Pensei: “Afinal, como professora e auxiliar se permitem cumprir esse papel de negligência? É dever do educador se portar de modo a atender TODAS as crianças de modo equivalente para que as condições que propiciam um desenvolvimento saudável sejam alcançadas. Que olhar insensível, o delas. Que formação deficitária foi essa?”. De fato, aquilo me preocupava. 
Posteriormente, entretanto, relendo meu caderno de anotações sobre a observação, deparei-me com uma garatuja em uma das páginas, o que me fez lembrar de uma situação ocorrida no momento do parquinho. Eu estava sentada na mureta que cercava o parquinho enquanto observava as crianças e aproveitava para fazer algumas anotações. Num dado momento, três meninas se aproximaram de mim com curiosidade. Uma delas perguntou: “O que você está fazendo?” (Lê-se com voz de uma criança de dois anos). “Estou anotando”, respondi, mostrando a elas o meu caderno. Uma delas se aproximou mais, fazendo como se quisesse pegar o caderno. Perguntei a ela se ela queria anotar também. Ela respondeu que sim. Entreguei a caneta a ela que, em seguida, se pôs a “anotar”. Enquanto ela anotava, eu instigava as outras duas: “O que é isso que ela está desenhando?’’ “Um saco de lixo”; “Uma bola”, palpitavam elas. Ficamos ali por um tempo. Só a chamada para o jantar me fez dispersar delas e elas de mim. Mas, algo interessante me saltou os olhos ao me pegar lembrando desta situação. De todo o ocorrido, nada me extasiava mais do que aquelas bochechinhas sedutoras e conversinha invocada envolvidas naquele ar de sapequice pura. “Como que pode ser tão fofa, gente?”, indagava-me com cara de boba. Siim, é isso mesmo que você está pensando! Fui pega pelo canto fofuresco e encantador da Gabriela. 
Neste momento, aquela revolta inicial deu lugar a um sentimento de empatia. Afinal, como não ceder aos encantos daquele pedacinho de gente tão gracioso? Como não me render aos encantos daquela fofurinha de modo a negligenciar atenção e dedicação similar as outras crianças? São questões às quais é difícil estabelecer uma resposta fechada assim como todas as que permeiam o campo da subjetividade humana. Não há receita. É legítimo que via constituição individual nos identifiquemos e/ou estabelecemos mais vínculo com uns do que com outros. Isso determina o campo no qual a afetividade, necessária para a aprendizagem de modo geral, emerja. Penso que o que não podemos perder de vista é o papel que nós, atuantes na educação infantil, devemos desempenhar para que o desenvolvimento destas crianças seja efetivo e autêntico. Produzir um olhar cada vez mais sensível e atento para possíveis contradições a partir do que respalda o Projeto Político Pedagógico da rede a qual está inserida. Para tanto, é imprescindível que avaliemos nossa prática constantemente.
Vale ressaltar, também, que toda reflexão é legítima. Permita-se indagar sobre o que observa no contexto pedagógico mesmo que seja para se pegar em contradição, como foi o meu caso (risos). Perceba, escreva, se coloque. Esta é uma ótima via para o surgimento de novas perspectivas, novas intervenções e novos caminhos.


Referência: Infâncias e Crianças em Cena: por uma Política de Educação Infantil para a Rede Municipal de Educação de Goiânia / Secretaria Municipal de Educação - Goiânia: SME, DEPE, DEI, 2014. 232p. : II.

*Nome fictício para preservar a identidade da criança.


* Dandara da Cruz Vieira é graduanda 
de Psicologia (UFG) e relata um pouco de sua experiência do Estágio em Licenciatura de Psicologia, sendo realizado em um Centro Municipal de Educação Infantil de Goiânia
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