segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

"Meu filho, para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito"

  MEU FILHO, VOCÊ NÃO MERECE NADA

    Divulgação
 ELIANE BRUM

Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada. Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade.

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes.

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais?

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país.

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa.

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir.

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando.

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa.

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito.

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba.

 Publicado em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI247981-15230,00.html

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Animações para crianças e adultos!

Um excelente programa para o fim de semana é reunir a família e assistir um bom filme, com direito a muita pipoca!!! E porque não escolher uma animação que aborde questões humanas, que nos façam refletir sobre nossa postura com os outros, com o mundo e com nós mesmos? O site Psique em Equilíbrio  fez uma ótima seleção de animações que cumprem esse propósito! E o melhor, não são filmes voltados apenas para crianças, mas para adultos também!!!

Confiram!


1. Divertidamente


Riley é uma garota divertida de 11 anos de idade, que deve enfrentar mudanças importantes em sua vida quando seus pais decidem deixar a sua cidade natal, no estado de Minnesota, para viver em San Francisco. Dentro do cérebro de Riley, convivem várias emoções diferentes, como a Alegria, o Medo, a Raiva, o Nojinho e a Tristeza. A líder deles é Alegria, que se esforça bastante para fazer com que a vida de Riley seja sempre feliz. Entretanto, uma confusão na sala de controle faz com que ela e Tristeza sejam expelidas para fora do local. Agora, elas precisam percorrer as várias ilhas existentes nos pensamentos de Riley para que possam retornar à sala de controle - e, enquanto isto não acontece, a vida da garota muda radicalmente

2. O Pequeno Príncipe

Uma garota acaba de se mudar com a mãe, uma controladora obsessiva que deseja definir antecipadamente todos os passos da filha para que ela seja aprovada em uma escola conceituada. Entretanto, um acidente provocado por seu vizinho faz com que a hélice de um avião abra um enorme buraco em sua casa. Curiosa em saber como o objeto parou ali, ela decide investigar. Logo conhece e se torna amiga de seu novo vizinho, um senhor que lhe conta a história de um pequeno príncipe que vive em um asteroide com sua rosa e, um dia, encontrou um aviador perdido no deserto em plena Terra.

3. Coraline e o mundo secreto

Entediada em sua nova casa, Caroline Jones (Dakota Fanning) um dia encontra uma porta secreta. Através dela tem acesso a uma outra versão de sua própria vida, a qual aparentemente é bem parecida com a que leva. A diferença é que neste outro lado tudo parece ser melhor, inclusive as pessoas com quem convive. Caroline se empolga com a descoberta, mas logo descobre que há algo de errado quando seus pais alternativos tentam aprisioná-la neste novo mundo.

4. Persépolis


Marjane Satrapi (Gabrielle Lopes) é uma garota iraniana de 8 anos, que sonha em se tornar uma profetisa para poder salvar o mundo. Querida pelos pais e adorada pela avó, Marjane acompanha os acontecimentos que levam à queda do xá em seu país, juntamente com seu regime brutal. Tem início a nova República Islâmica, que controla como as pessoas devem se vestir e agir. Isto faz com que Marjane seja obrigada a usar véu, o que a incentiva a se tornar uma revolucionária.

5.  Canção do Oceano


A pequena Saoirse tem um poder especial: ela pode se transformar em uma foca, e depois retornar à condição humana. Ela é uma "selkie", de acordo com a lenda irlandesa e escocesa, e uma das últimas de sua espécie. Um dia, Saoirse foge à vigilância da avó e embarcar em uma aventura subaquática para liberar criaturas em perigo.

6. Anina


Anina estuda em uma escola primária de Montevidéu. Ela tem uma melhor amiga, mas não se dá nada bem com a colega Yisel, com quem tem uma briga feia e acaba recebendo uma suspensão. Durante esse período, a menina comenta a sua vida: os pais, as refeições, as vizinhas fofoqueiras, seus sentimentos, alegrias e medos.

7. O mágico

Um senhor trabalha como mágico, mas vê o público diminuir cada vez mais devido à preferência por atrações mais jovens e populares. Como consequência, ele tem menos oportunidades de trabalho e precisa viajar para se manter. Numa destas viagens, rumo à Escócia, ele conhece uma garota, a quem presenteia com um par de sapatos. Ao ir embora ela decide ir com ele. Ao mesmo tempo em que deseja ajudá-la, ele precisa encontrar meios para sustentar ambos.

8. A viagem de Chihiro

Chihiro é uma garota de 10 anos que acredita que todo o universo deve atender aos seus caprichos. Ao descobrir que vai se mudar, ela fica furiosa. Na viagem, Chihiro percebe que seu pai se perdeu no caminho para a nova cidade, indo parar defronte um túnel aparentemente sem fim, guardado por uma estranha estátua. Curiosos, os pais de Chihiro decidem entrar no túnel e Chihiro vai com eles. Chegam numa cidade sem nenhum habitante e os pais de Chihiro decidem comer a comida de uma das casas, enquanto a menina passeia. Ela encontra com Haku, garoto que lhe diz para ir embora o mais rápido possível e ao reencontrar seus pais, Chihiro fica surpresa ao ver que eles se transformaram em gigantescos porcos. É o início da jornada de Chihiro por um mundo fantasma, povoado por seres fantásticos, no qual humanos não são bem-vindos.

9. Festa no céu


Um grupo de crianças bagunceiras é encaminhado a uma visita guiada ao museu, como “punição” pelo mau comportamento. Lá, uma guia diferente resolve percorrer um caminho alternativo e os apresenta ao "Livro da Vida", que contém todas as histórias. A mais simbólica delas, baseada nas tradições mexicanas, envolve três mundos. Catrina/ La Muerte é uma adorada deusa ancestral, que governa a Terra dos Lembrados. Ela é ex-mulher de Xibalba, o governante da Terra dos Esquecidos, um trapaceiro. Em uma visita à Terra dos Vivos, eles fazem uma aposta. Se a jovem e bela Maria, filha da maior autoridade da cidade de San Angel, escolher se casar com o emotivo violinista Manolo, Catrina ganha, e Xibalba não poderá mais interferir no Mundo dos Vivos, como gosta de fazer; se o preferido for o valente Joaquim, Xibalba passa a governar, também, o Mundo dos Lembrados.

10. UP

Carl Fredricksen (Edward Asner) é um vendedor de balões que, aos 78 anos, está prestes a perder a casa em que sempre viveu com sua esposa, a falecida Ellie. O terreno onde a casa fica localizada interessa a um empresário, que deseja construir no local um edifício. Após um incidente em que acerta um homem com sua bengala, Carl é considerado uma ameaça pública e forçado a ser internado em um asilo. Para evitar que isto aconteça, ele enche milhares de balões em sua casa, fazendo com que ela levante vôo. O objetivo de Carl é viajar para uma floresta na América do Sul, um local onde ele e Ellie sempre desejaram morar. Só que, após o início da aventura, ele descobre que seu pior pesadelo embarcou junto: Russell (Jordan Nagai), um menino de 8 anos.

11. O segredo de Kells


O jovem Brendan vive em uma vila medieval remota sob o cerco das invasões bárbaras, mas uma nova vida de aventuras surge quando um mestre iluminador chega de terras estrangeiras carregando um livro antigo inacabado repleto de sabedoria secreta e poderes. Para ajudar a completar o livro mágico, Brendan tem que superar seus medos mais profundos em uma busca perigosa que o leva para a floresta encantada onde criaturas míticas se escondem. É aqui que ele encontra a fada Aisling, uma misteriosa jovem mulher-lobo, que o ajuda ao longo do caminho.

12- Mary & Max – Uma amizade diferente


Mary Daisy Dinkle (Toni Collette) é uma menina solitária de oito anos, que vive em Melbourne, na Austrália. Max Jerry Horovitz (Philip Seymour Hoffman) tem 44 anos e vive em Nova York. Obeso e também solitário, ele tem Síndrome de Asperger. Mesmo com tamanha distância e a diferença de idade existente entre eles, Mary e Max desenvolvem uma forte amizade, que transcorre de acordo com os altos e baixos da vida.

13. O menino e o mundo


 Um garoto mora com o pai e a mãe, em uma pequena casa no campo. Diante da falta de trabalho, no entanto, o pai abandona o lar e parte para a cidade grande. Triste e desnorteado, o menino faz as malas, pega o trem e vai descobrir o novo mundo em que seu pai mora. Para a sua surpresa, a criança encontra uma sociedade marcada pela pobreza, exploração de trabalhadores e falta de perspectivas. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Quem precisa da Barbie, tenha o corpo que tiver?


Demorou só 57 anos para a Mattel “descobrir” que as mulheres reais do planeta têm cores e formas variadas. A notícia de que a Barbie ganharia mais três tipos de corpos foi comemorada como uma vitória da diversidade. Por décadas movimentos denunciaram a imposição de um único padrão de beleza. Mas só nos últimos anos, quando as vendas começaram a cair, a Mattel “sensibilizou-se” e reconheceu a multiplicidade das mulheres do mundo. Em 2015, a empresa já tinha iniciado a conversão da Barbie, lançando sua criação com novas tonalidades de pele, penteados e estruturas faciais, sem deixar de manter a “clássica”. Com a inclusão de novas formas, a boneca é lançada agora com sete tons de pele, quatro tipos de corpos, 22 cores de olhos e 24 estilos de cabelos diferentes, na linha que chama de “Fashionistas”. Quando a mudança é anunciada, a Mattel já povoou a Terra com uma superpopulação de suas criaturas loiras, altas e magras. E a cabeça das crianças com um modelo que vai muito além de um padrão de beleza. Barbie é aquela que ensina as meninas que se nasce para consumir. Já foram produzidas mais de 1 bilhão dessas replicantes, há mais Barbies no mundo do que europeus na Europa. Nenhuma delas é “apenas” uma boneca.

Se a pressão dos protestos contra a Barbie e o crescente protagonismo das minorias na afirmação da diversidade conseguiram fazer as vendas do produto caírem a ponto de obrigar uma das maiores fabricantes de brinquedos a se mover, não é pequena essa conquista. Mas é também assustadoramente fascinante observar o capitalismo em ação.
Neste início de 2016, a Mattel conseguiu a façanha de estampar seus novos modelos na imprensa, além das redes sociais, sem pagar um centavo por isso. E com uma imagem positiva. Começou por uma capa da revista Time, com a foto da Barbie e o seguinte título: “Agora nós podemos parar de falar sobre o meu corpo?”. E seguiu em milhares de publicações mundo afora. É com assombrosa candidez que Evelyn Mazzocco, a vice-presidente sênior da Mattel, afirma sem ruborizar: “Acreditamos que temos uma responsabilidade para com as meninas e seus pais de refletir uma visão mais ampla da beleza”. Um detalhe que a descoberta da “responsabilidade” tenha ocorrido só depois de constatar que as vendas da boneca caíram 20%, entre 2012 e 2014, e seguiram caindo no ano passado. A estratégia da Mattel, que parece estar obtendo considerável sucesso, é fazer a liberação dos corpos barbísticos vendendo a imagem de uma empresa afinada com o seu tempo, defensora das “diferenças” e até mesmo inovadora. Se conseguir, se transformará num case obrigatório em livros de marketing, em mais uma prova de que o capitalismo sempre pode contar com a adesão pela fé quando as pessoas são reduzidas a consumidores.
A campanha que inclui vários vídeos mostrando a gênese da “nova” Barbie apresenta a Mattel como a intérprete do “mundo que vemos hoje”. A empresa que durante mais de meio século incutiu um modelo único – e nada inocente – na cabeça das crianças é convertida naquela que celebra as diferenças e ajuda as meninas a se identificar e a conviver num planeta multicultural. “O mundo da Barbie está evoluindo” – é o mote publicitário. Evoluindo para que o essencial possa continuar o mesmo: a lógica do mercado e o retorno das vendas ao mesmo patamar ou mais. Mas isso, obviamente, não é dito.
As cenas são interpretadas por crianças étnica e racialmente variadas – como as novas Barbies, nascidas paras as prateleiras de 150 países do mundo. “É importante que as Barbies sejam diferentes como as pessoas no mundo real”, diz uma das meninas. Executivos da empresa falam da importância da mudança “porque não há um só padrão de como é um corpo bonito”. Ou: “Temos que mostrar às meninas que, independentemente de sua aparência, tudo é possível”. O lema da Barbie, afinal, é #VocêPodeSerTudoQueQuiser. Talvez não exista nada pior para uma criança do que a mentira de que é possível alcançar a completude – ou de que é possível viver sem perdas. Ou ainda de que não haverá limites. Chega a ser criminoso, mas a publicidade varia esse mote em diferentes produtos – e as crianças mal acabaram de nascer e já tem a Barbie lhes sussurrando essa promessa nos ouvidos enquanto sacode os cabelos.
É mesmo “mágico” o mundo em que o deus criador da Barbie se torna um avalizador da diversidade, quando não seu próprio inventor
Ao final de um desses vídeos promocionais, uma menina diz: “Essas bonecas se parecem com as pessoas do meu mundo mágico”. É mesmo “mágico” o mundo em que o deus criador da Barbie se torna um avalizador da diversidade, quando não seu próprio inventor. De um certo ângulo, são sinistros os vídeos fofinhos e politicamente corretos do mundo das “Barbies da diversidade”, como já estão sendo chamadas. E um tanto perturbador o cinismo dos executivos da Mattel ao discorrer sobre a importância de respeitar as diferenças com a certeza de que o passado será de imediato esquecido, no átimo de tempo em que um coelho é sacado da cartola ou que um lenço vira pombas. Também na aparição do staff da Mattel há o cuidado com a variedade dos estilos, das cores e das formas, reforçando a mensagem e sendo legitimada por ela. Mas a sensação pode ficar mais esquisita quando se lê no Facebook as mensagens de mulheres e também homens, agradecendo à Mattel por tornar o mundo melhor, mais diverso, plural e tolerante. A maioria “muito feliz” e dizendo “dez vezes obrigada” pela “evolução” da Barbie.
Que modelo de mulher é a Barbie, que reinou por mais de meio século como um ideal feminino a ser atingido? Um que não existe. E não é que Barbie não exista por ser linda demais, inatingível para pobres mortais com seus genes imperfeitos, mas sim por ser bizarra demais, uma arquitetura que literalmente não para em pé. Segundo infográfico do Rehabs.com, graças a sua cinturinha, Barbie só teria espaço para acomodar metade de um rim e alguns centímetros de intestino. Como o pescoço é duas vezes maior do que o de uma mulher e 15 centímetros mais fino, ela não teria como manter a cabeça erguida. Andar, só de quatro. Se fosse uma mulher de carne e osso, Barbie seria uma anoréxica.
É apenas uma boneca, poderiam dizer alguns. Ou até muitos. Mas essa boneca não foi criada para ser “apenas” uma boneca. Barbie é vendida como uma amiga, uma mentora e um modelo a ser seguido, com influência sobre pelo menos duas gerações de mulheres. O que Barbie vende é um modo de vida e de se relacionar com os outros e com o mundo. Seu primeiro processo de “purificação” foi eliminar as origens de seu nascimento, já que ela foi inspirada na boneca alemã Lilli, personagem de quadrinhos eróticos e presente para homens vendido em tabacarias. Lilli seduzia homens ricos na Alemanha do pós-guerra para ter de volta a prosperidade perdida. Quando Barbie foi lançada em 1959 para ser a companheira de crianças, os traços de sua “mãe” devassa tinham sido suavizados, mas ainda assim a “boneca com seios” foi recebida com desconfiança pelas famílias americanas. Pouco a pouco, porém, Barbie foi “evoluindo” para se tornar uma educadora e um “bom exemplo”, uma mentora capaz de ensinar às meninas a serem as mais bem adaptadas e populares, segundo os valores da sociedade americana. Hoje, mais de 90% das garotas entre 3 e 12 anos, nos Estados Unidos, têm uma Barbie, essa boneca que não é uma criança.
A partir do seu corpo impossível é vendida uma série de roupas, sapatos e acessórios, assim como casas, móveis, salões de beleza, lojas, outros bonecos, um mundo inteiro. Mas não qualquer mundo, mas um mundo em que todos os valores são mediados pelo consumo, como se observa nos jogos, filmes e outros produtos do planeta-mercadoria da Barbie. Ser mulher, ensina ela, é ser uma consumidora. No lema #VocêPodeSerTudoQueQuiser, o “Ser” é habilmente usado para encobrir o “Ter”. Ser e Ter com o mesmo significado – ou Ser é Ter. Nisso está implicado que a medida do sucesso de alguém é eliminar qualquer interdição entre o consumidor e o produto. A única forma de “ser” tudo o que quiser é consumir e, assim que a sensação de completude desaparece, o que acontece muito rapidamente, consumir de novo. E de novo. É assim que o planeta que a Barbie difunde de forma tão competente gira.
Ser mulher, ensina Barbie, a “educadora”, é ser uma consumidora e recusar qualquer limite
Desde que a boneca surgiu, Barbie é alvo de protestos. Em 1970, adolescentes já levantavam cartazes em manifestações pela igualdade entre os gêneros: “Eu não sou uma Barbie”. Mas talvez a intervenção mais criativa tenha ocorrido nos anos 90, pela autoproclamada “Organização para a Libertação da Barbie”. O grupo reagia a uma série de falas da boneca e, em especial, a uma em que ela dizia: “Matemática é difícil”. A frase sofreu fortes críticas, por reforçar o estereótipo da mulher bonitinha e burra. Os ativistas trocaram então a voz da Barbie pela voz de outro boneco, este um estereótipo masculino, chamado GI Joe. Quando meninas abriram seus presentes de Natal, sua Barbie loirinha dizia: “Homem morto não conta mentira”.
Existe uma bibliografia em língua inglesa dissecando o corpinho da Barbie. No Brasil, pode ser lido Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque(Annablume, 2012). Nele, Fernanda Roveri partiu de sua dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na qual brinca nos capítulos com os tipos de Barbie: “Barbie Farsa”, “Barbie Lânguida”, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, para refletir sobre a criatura da Mattel.
Há muitas histórias emblemáticas sobre como são tomadas as decisões que vão interferir no imaginário das crianças. Mas a mais incrível delas talvez seja sobre Ken, o namorado da Barbie. De fato, sobre o pênis de Ken. Houve um dilema na Mattel sobre como contornar essa questão. Conta a autora do livro que acabou se optando por uma alternativa intermediária: Ken usaria uma roupa de banho permanente com “um pequeno volume”. O problema é que, quando a determinação chegou à fábrica no Japão, o engenheiro supervisor decidiu suspender a pintura do short, para facilitar o processo, e calculou que a eliminação da lombada genital reduziria o custo de produção do boneco em um centavo e meio de dólar. Foi para lucrar mais que Ken nasceu eunuco. Fernanda Roveri aponta para a questão de que os fabricantes jamais pensaram que as crianças poderiam ficar traumatizadas com uma Barbie sem vagina, como suspeitaram que poderia ocorrer com um Ken sem pênis. O fato é que os dois bonecos “realistas” com que brincam meninas do mundo inteiro são igualmente castrados.
Mas é nos dois últimos capítulos, “Barbie Tóxica” e “Barbie Tribunal”, que o truque oculto da mágica capitalista do fenômeno Barbie, ao longo das décadas, é revelado. Quem produz a criatura, em que condições de trabalho, de que material, com que efeitos. “Mulheres japonesas, donas de casa, chamadas de ‘pessoas da tarefa doméstica’, costuravam exaustivamente os primeiros trajes da boneca em suas residências. Essas mulheres ficavam cegas para que Barbie pudesse usar tafetá, espetavam seus dedos para que ela pudesse passar o feriado esquiando, curvavam-se e estragavam suas costas para que Barbie não dormisse nua”, escreve a autora, citando relatórios, documentos e livros. “Na Tailândia, centenas de mulheres e crianças enchiam, cortavam, vestiam e montavam a boneca Barbie, ganhando de quatro a sete dólares por um dia de 12 horas trabalhadas. Além do baixo salário, muitas dessas trabalhadoras ficavam com problemas respiratórios, perda de memória e de audição, dores musculares, vômitos, transtornos no sono, menstruações irregulares em razão da contaminação por chumbo, fumaça e outros produtos químicos”. Em 2013, a organização China Labor Watch denunciou as péssimas condições de trabalho e as jornadas exaustivas constatadas em fábricas chinesas ligadas à produção da boneca.
Investigar a linha de montagem planetária de Barbie é necessário para quem pretende ser mais do que um consumidor abobalhado
Qual é a linha de montagem planetária da Barbie e os reais bastidores que não viram vídeos publicitários? Esse é um caminho de investigação para quem pretende ser mais do que um mero consumidor abobalhado. O truque do “mágico” no mundo real, afinal, precisa de fartas doses de sangue humano e de destruição ambiental para produzir números superlativos: as vendas da Barbie são estimadas em mais de 1 bilhão de dólares por ano.
Agora, com quatro corpinhos, a roupa de uma Barbie não servirá na outra Barbie. E há também pelo menos dois tipos de pezinhos que pedirão sapatinhos de números diferentes. É um ganho da diversidade, para quem pensa que o mundo não pode prescindir de Barbies? É. Mas também é mais de tudo. Vale a pena ainda observar quais foram os corpos e alturas aceitos pelo mundo Barbie em nome da diversidade. A mais “curvy” está muito longe de ser gorda ou mesmo gordinha. “Espero que vocês não confundam curvilínea com Gorda, cada coisa é uma coisa, mas já é uma diferença enorme do padrão da boneca, e quem sabe um dia teremos uma Barbie GORDA”, postou o Coletivo Gordas Livres, comentando a mudança.
Se existia uma Barbie negra desde o final dos anos 60, período das lutas pelos direitos civis dos negros americanos, a “negritude” se limitava a trocar a cor do plástico da boneca. Agora há muitos mais tons de pele, tipos de cabelo e estruturas faciais, o que também tem sido interpretado como uma conquista. No Brasil não se via Barbies negras nas prateleiras e até hoje quem quer presentear uma criança com uma boneca negra precisa contar com espaços alternativos. Um dos mais conhecidos é a “Preta Pretinha”, uma loja na Vila Madalena, em São Paulo, que há 16 anos faz bonecos artesanais que não se vê no mercado porque fora do padrão estabelecido, por diferentes razões e circunstâncias. Há negros e indígenas. Há orientais. Há cadeirantes, cegos, crianças com membros amputados. Há também bebês carecas, com câncer, procurados por pais de crianças com leucemia. Na medida em que meninos e meninas vão recuperando os cabelos após o tratamento do câncer, podem também ir povoando a cabeça dos seus bonecos com fios. A loja, criada por três irmãs, está ligada a um instituto com o mesmo nome, que trabalha os temas do racismo, discriminação e inclusão. Inspiraram-se na avó, que ao não encontrar bonecas negras para presentear as netas, começou a costurá-las em casa. Como não há uma linha de montagem industrial e planetária, esse tipo de espaço alternativo tem preços mais elevados e jamais poderá competir em custo e escala com empresas do porte da Mattel.
Em janeiro, a foto de Matias, um menino de 4 anos, segurando o boneco do personagem Finn, do filme Star Wars – O Despertar da Força, viralizou na internet. Na legenda da foto, sua mãe escreveu: “Ele nem sabe o que é Star Wars, sabe que o boneco é igual a ele”. Entrevistado, Matias afirmou: “Ele é pretinho igual a mim”. Logo depois, uma fabricante de produtos infantis fez uma fantasia do mesmo boneco negro e colocou a foto de um garoto branco na embalagem. Fortaleceu-se então a campanha “Não me vejo, Não compro!”, exigindo representatividade nas prateleiras. Em 27 de janeiro, no Facebook, a empresa anunciou que convidou Matias para ser o novo modelo da embalagem do produto, “atenta ao movimento global e ouvindo as críticas sobre a falta de diversidade étnica nas peças publicitárias veiculadas no Brasil”.
Será que se reconhecer num brinquedo é o suficiente para se sentir representado?
“Não me vejo, Não compro!” é uma linguagem que os fabricantes de brinquedos entendem muito bem – e escutam. É o que aconteceu com a Mattel, diante da perda de popularidade da Barbie, traduzida em cifrões. E há mesmo o que se comemorar nisso. Afinal, não se reconhecer nos brinquedos oferecidos pelo mercado pode ter efeitos devastadores na vida de uma criança.
O que pode ser perturbador, porém, é a aceitação tácita de que precisamos de Barbies e outros produtos do gênero. De que não há brinquedos ou imaginação fora da indústria. De que é preciso consumir mercadorias do tipo – e de que a autonomia possível é influenciar aquilo que as corporações vendem, reduzindo toda intervenção ao papel de “consumidores conscientes”. Pode ser perturbador constatar que a insubordinação máxima seja não comprar porque não se reconhece. Mas, caso se reconheça no produto que chega às prateleiras, toda a cadeia simbólica e concreta implicada nesse ato está justificada? Será que se reconhecer num brinquedo é o suficiente para se sentir representado? É a naturalização que pode soar preocupante quando se testemunha ativistas comemorarem a “evolução” da Barbie, aceitando sua existência no quarto das meninas como fato consumado, presença imprescindível, já dada, sem questionar as engrenagens mais ocultas que levam a boneca até a vida das crianças.
Quem precisa da Barbie, afinal, tenha ela a forma, a cor e o cabelo que tiver? A pergunta parece ter silenciado.
Quanto mais realista a boneca, menos imaginação precisa a criança. Sem esquecer que “realista” dá conta de uma realidade determinada, planejada e autorizada por uma equipe de profissionais do marketing. E não da realidade como experiência e conflito. Uma boneca serve justamente para se pensar a vida enquanto se brinca. E brincar não é imitar. Para que, então, serve uma Barbie e o seu “mundo mágico” onde #VocêPodeSerTudoQueQuiser? Para que serve uma Barbie, mesmo que seja a “Barbie da diversidade”?
Barbie não é mesmo qualquer boneca. Será interessante observar como seu novo esforço de purificação dos pecados, agora em nome do respeito às diferenças, vai “evoluir” nos próximos anos. Talvez seja importante pensar, para além do primeiro entusiasmo, os significados mais profundos de um produto com a carga simbólica de Barbie converter direitos em publicidade.
Barbie, vale a pena lembrar, ganhou uma réplica no museu de cera de Grévin, em Paris. Esta é uma cena perturbadora, porque as outras representações que lá estão são de pessoas que viveram, que tiveram ossos, carne, sangue e história. E lá se imortalizaram em cera. Quando a boneca vira boneca, completa-se a transmutação: Barbie vira gente. Torna-se viva.
Evolução, a palavra escolhida pela Mattel para nomear a mudança de sua criatura, é mais do que reveladora. Como provou Darwin, as espécies vivas, como os humanos, evoluem. Por milhões de anos, na seleção natural. Barbie, mais uma vez, invoca sua “naturalidade”, ainda que “no mundo mágico”. Barbie, a boneca, seja com um ou quatro corpos, segue inventando a vida de meninas de carne e osso.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email:elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
Fonte: El País
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